A intervenção federal na segurança
do Rio de Janeiro tem
todas as condições para dar errado. A corrupção política e policial, o
corporativismo e as sólidas bases criadas pelas facções criminosas no estado
serão apenas alguns dos muitos obstáculos que o comandante militar do Leste,
general Walter Braga Netto, terá que enfrentar.
Quem alerta tem
conhecimento de causa: o coronel Fernando
Montenegro, da reserva do Exército
Brasileiro e professor da Universidade Autônoma de Lisboa. Como
comandante do Regimento Sampaio, uma das mais tradicionais unidades militares do
país, participou da ocupação do Complexo
Penha-Alemão, em 2010, e encarou os desafios impostos contra o Estado
pelo governo paralelo montado pelo narcotráfico.
“Mesmo nos
estados falhados, como a Somália, não existe território que não esteja ocupado
por uma forma de governo”, alerta. “Aonde a autoridade oficial não chega, um
poder paralelo se instala. É o que o professor Bartosz Stanislaws definiu como
‘buracos negros’. Foi o que ocorreu no Rio de Janeiro, onde existem 840 locais
onde o Estado não tem qualquer
ingerência.”
Nestas áreas
funcionam mini países informais que dominam território e população e, de certa
forma, exercem soberania. Este fenômeno não se restringe às favelas e pode ser
observado em quase todo o Brasil em áreas historicamente abandonadas pela
União, como acampamentos de agricultores sem-terra e garimpos. Aliadas a
políticos corruptos, estas “mini nações” interferem diretamente na
administração pública e drenam recursos do combate à violência.
Longe das
ruas
Um bom exemplo
deste fenômeno, de acordo com o coronel, seria a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Hoje, três mil
integrantes da corporação exercem função administrativa na Assembleia
Legislativa, dez deles lotados no gabinete de um parlamentar, o deputado
estadual Paulo Melo (PMDB), que preso na Cadeia Pública de Benfica por
corrupção. O candidato derrotado à Prefeitura do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo
(PSOL), também mantém dez PMs sob sua tutela.
“Há um total
descaminho de policiais que podiam atuar nas ruas e se encontram em situação
administrativa”, afirma Montenegro. “A Secretaria de Segurança Pública é outro
excelente exemplo. Lá, 500 policiais militares exercem função burocrática na
maior estrutura do gênero do país. Claro, todos preferem ficar longe das ruas,
ganhando boas gratificações e a salvo”, ressalta.
“Com o resgate
desses efetivos e o fim das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) a vigilância
ostensiva poderia ser reforçada em cerca de 4 mil agentes.” Para o
especialista, as UPPs falharam porque não receberam o devido apoio financeiro
federal e não foram complementadas por ações nas áreas de saúde e educação e
hoje estão completamente isoladas e afetadas pela corrupção.
Um grande
obstáculo para o sucesso da intervenção está nos limites impostos pela
legislação às ações de garantia da lei e da ordem. “O Exército não tem
ingerência direta sobre a polícia que, por corporativismo, se recusava a
integrar esforços conosco”, conta o coronel. “No decreto está previsto que a
não obediência a uma ordem será vista como crime militar, e a Justiça Militar é
bem mais rápida que a civil, mas, na prática isto será de difícil implantação.”
Para ele, os
desafios geográficos enfrentados pelas Forças Armadas e pelas polícias federais
também dificultam o sucesso da missão do general Braga Netto. “Temos 17 mil
quilômetros de fronteiras, muitos deles compartilhados com países produtores de
drogas, como a Bolívia, a Colômbia, o Peru e a Venezuela”, lembra. “Os Estados
Unidos possuem apenas dois mil em seus limites com o México e não consegue
impedir o tráfico de pessoas e entorpecentes. Seria necessária uma ação
integrada do Ministério das Relações Exteriores com os governos vizinhos nos
planos estratégicos e operacionais.”
Segundo
Montenegro, os chamados donos de morro montam uma estrutura bastante
sofisticada que se entranha pelas comunidades, determina a vida econômica local
e serve para eleger políticos que defendem os interesses do crime organizado.
Facções
organizadas
“Há um
departamento de informação e propaganda, que trabalha com o que nós militares
chamamos de operações psicológicas. Organiza bailes funks e promove a
organização criminosa por meio de contratação de artistas, músicas de apoio e
de promoção do sexo e de vídeos distribuídos pelo YouTube e pelo WhatsApp. Cabe
a eles marcar território com a sigla da facção e o nome do líder nos limites de
atuação na comunidade. Com estas atividades, a distribuição de panfletos e a
colocação de faixas conseguem novos recrutas, entre eles jovens que fizeram o
Curso de Formação de Cabos do Exército e que possuem excelente formação
militar.”
As facções
também mantêm departamentos jurídicos, que atuam na obtenção de habeas corpus e
negociam os chamados “arregos” (pagamentos de propinas a policiais e
políticos); financeiros e logísticos, que tratam do fluxo de caixa, de
matérias-primas e do suprimento de armas e munições; de produção, com gerentes
diferentes para cada tipo de droga, e de distribuição, com vendedores no varejo
e “vapores”, traficantes que levam o produto para áreas de maior renda e que
atuam em festas e bares. “A coisa vai muito além do traficante armado com
fuzil”, conta o professor.
“O sistema de
alerta inclui crianças que usam celulares, rádios e outros sistemas, como fogos
e pipas, para avisar os combatentes da chegada de policiais ou grupos rivais. A
tomada de um morro segue o mesmo esquema de saque da Idade Média. O grupo se
apropria do butim e dos equipamentos da facção derrotada. Há sempre muito
dinheiro vivo, inclusive dólares e euros, porque as quadrilhas não usam o sistema
bancário.”
Ao lado desta
ação direta, as quadrilhas multiplicam seus recursos com a exploração de
serviços, alguns deles regularizados, e a cobrança de taxas e impostos. Tudo o
que sobe e desce o morro, do mototáxi aos botijões de água e gás, reverte para
a facção. Centrais ilegais de TV a cabo e de internet também ampliam a renda
dos grupos. “Ao chegarmos no Alemão, conseguimos convencer uma operadora a
oferecer pacotes baratos para substituir a gatonet”, conta Montenegro, “mas,
para nossa surpresa, as empresas de distribuição de gás e água eram legais,
apesar de exploradas por familiares do dono do morro. Na Rocinha, o serviço é
administrado pelo irmão do Marcinho VP.”